A opção pelos pobres vem sendo sistematicamente abandonada por boa parte do episcopado e do clero, para sequer falar dos cristãos que buscam a Deus de coração sincero. Na contramão da “Igreja em saída”, proposta pelo Papa Francisco, o que se vê na prática cristã, no modo de viver a fé e na formação em geral é um retorno à sacristia, como refúgio das tempestades e turbulências do dia-a-dia.
Vestuário vistoso e brilhante, o cuidado meticuloso com os objetos sagrados, a primazia do templo sobre as “ovelhas perdidas” e o formalismo rigorosamente ritual da liturgia – tudo isso tende a esconder um vácuo e um vazio teológico e solidário cada vez mais profundo e, ao mesmo tempo, cada vez mais superficial.
Navega-se nas ondas aparentes dos modismos apresentados pela mídia católica, quase que inteiramente descompromissada com o aspecto social, para evitar mergulhos mais profundos na realidade dura, fragmentada e mutilada da população. Criam-se fã-clubes debruçados sobre o próprio umbigo e vai-se colhendo os aplausos efêmeros que exigem não exatamente a Boa Nova do Evangelho, e sim as novidades de um gigantesco e enganoso mercado da fé.
Basta percorrer os corredores dos seminários ou as sacristias de tantas comunidades e paróquias para dar-se conta da distância em que estamos dos passos do “Jesus histórico de Nazaré”. O Papa Francisco bem que tentou trazer o Nazareno ao centro da Igreja. Mas suas palavras e seus gestos proféticos tendem a ser folclorizados, o que é bem mais cômodo que segui-lo.
Ouve-se o “Angelus” com certo entusiasmo, lê-se os escritos do Santo Padre, acompanha-se seus gestos solidários, concorda-se com sua denúncia sobre a “economia que exclui, descarta e mata”, mas nada disso mexe com nosso comportamento diário. Ao contrário, parece que quanto mais o pontífice bate nessa tecla de uma globalização excludente, mais diversos setores da Igreja procuram esmerar-se em pompa, em brilho e em aplausos fáceis. Aplaude-se o chefe supremo da Igreja Católica, claro, mas em seguida o folclore predomina sobre uma opção real e comprometida com os pobres, indefesos, abandonados e descartados pelo mercado excludente.
As congregações religiosas, fundadas para nos conduzir às periferias, aos porões e às fronteiras, também elas, com raras e boas exceções, acabam se acomodando na sacristia das paróquias mais rendosas, procurando administrar seus bens e suas estruturas obsoletas. Talvez nos institutos femininos, menos apegados à disputa pelo poder, se encontre uma tentativa mais ousada e profética de “avançar para águas mais profundas”. Mesmo aí, contudo, não raro prevalecem o brilho das exterioridades e a defesa dos “bens e estruturas”.
Como Igreja, distanciamo-nos do “profeta itinerante de Nazaré. Práticas, teologia, espiritualidade, opção pastoral – tudo parece desmentir a pobreza, a castidade e a obediência do Menino que nasceu em Belém. Não uma pobreza da miséria, mas aquela que descobriu o verdadeiro tesouro; não uma castidade estéril, mas viva e fecunda; não uma obediência cega e castradora, mas expressão da liberdade diante do projeto do Pai. Onde foi parar o verdadeiro seguimento de Jesus?
Em lugar disso, nossos interesses se voltam para o carro de último tipo, os ornamentos sagrados e litúrgicos, o bem-estar de nossas vidas, o ninho aconchegante da sacristia. Para quê sujar mãos e pés quando podemos mantê-los limpos?! As opções proféticas deram lugar a vidas envernizadas, das quais, de resto, o povo se sente distante. E sente vergonha de convidar o ministro de Deus ou a religiosa para sua casa, tão pobre, tão desprovida, tão afastada desses ilustres “homens e mulheres de Deus”!
Mas o que mais ilustra a falta de opção pelos pobres é, sem dúvida, o uso do tempo, a maior riqueza dos discípulos e missionários do Reino. Uns usam o tempo como “latifúndio”, propriedade privada, quase sempre improdutiva, e devidamente cercada contra os pobres e intrusos. Tempo para o celular, a TV, o carro, a vida particular… e o tédio, pois tudo que se acumula apodrece. Outros usam o tempo como “investimento”, interiorizando os critérios do capitalismo. “Time is money”, gasta- se somente com quem traz dividendos imediatos; nada de perder tempo com que não pode dar retorno; o tempo é milimetricamente calculado para gerar mais influência, mais capitalização… ou um dízimo mais robusto.
Poucos usam o tempo à maneira de Jesus: “tempo gratuito”. O tempo do Filho é o tempo do Pai, deve estar a serviço dos pobres, sem qualquer esperança de ressarcimento. Por isso, a caravana de Jesus jamais ignora ou atropela quem pede socorro. O Mestre sempre se detém quando a vida está ameaçada. Seu tempo é oferecido gratuitamente aos sem vez e sem voz… Numa clara opção pelos pobres, desvalidos e marginalizados.
Fica a pergunta: a “Igreja em saída” do Papa Francisco irá sobreviver ao pontífice? A tentativa de trazer para o centro Jesus e Nazaré e os pobres prevalecerá? Ou, ao contrário, os lobos estão à espreita para tomar conta do rebanho e devorá-lo? A opção pelos pobres é frágil, tem como única arma o amor e o serviço. Como vencer as turbulências e contradições do momento? A extrema-direita em ascensão não se esconde também sob o manto sagrado da fé, às vezes sob uma Maria “europeizada”, descontextualizada, idealizada, para interromper os passos de Francisco e impor caminhos mais tenebrosos. Toda a atenção e vigilância serão poucas, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista religioso. Ambos podem ser manipulados e instrumentalizados para os interesses das classes dominantes… e o são!
São Paulo, 16.01.2023
Pe. Alfredo José Gonçalves, Scalabriniano